domingo, 5 de abril de 2015

Ser Dolce e Gabanna

Talvez eu devesse ter escrito isto há mais de um século. Afinal a internet tem outro ritmo que não se compadece com a maturidade. Se o escrevesse a quente não o teria escrito assim. Terei de ir tentando equilibrar-me na fina linha em tensão entre o ritmo, a reflexão, os afazeres, que os há além da escrita, e a obrigação que tenho para convosco e para com os temas que trago, cuja leitura pessoal procuro que seja original. Uma linha em tensão sobre tamanha trama tem um nome: teia. Sempre quis ser o homem-aranha. Que maneira estranha de pedir desculpas a quem me lê e teve a paciência de esperar estes anos-luz. Ainda bem que é só um. Ou dois, vá, no máximo. Mas para os que são, vale a pena.
         Voltemos a essa expressão sempre tão infeliz: a vaca fria. Se bem que com maionese, marcha, fria e tudo.
        Dolce e Gabanna disseram isto. Elton John ofendeu-se e disse que não comprava. Podia não comprar e estar calado, mas não seria ele se estivesse calado. Depois veio a Vitória. A Courtney. A Madonna. A Ellen. Não necessariamente por esta ordem.
       A internet é um local de lendas, não há dúvida, mas são lendas escolhidas. Não são escolhidas pelo algoritmo G, mas por quem o manipula. No caso é interessante que tenhamos que escavar bem fundo para encontrar as declarações originais de Dolce e Gabanna: os títulos que nos aparecem são sempre do boicote. Alguns artigos vão mais longe e acompanham a notícia de links, todos eles negativos, sobre Dolce e Gabanna e links, todos eles positivos, sobre Elton John.
      De um lado, temos declarações de uns estilistas sobre as suas convicções e história pessoais. Note-se que eles nem sequer são unânimes. Um gostaria de ter tido um filho, o outro não, considera que optou por outra vida e que isso tem consequências. Do outro lado temos uma polémica, um boicote, as declarações reduzidas a um soundbyte, um hastag repetido a ritmo alinhado, orquestrado.
      Declaração de interesses: houve tempos em que ouvi Elton John. Até é possível que tenha chegado a cantar qualquer coisa dele em karaoke, embora não esteja disposto a admiti-lo senão perante provas documentais. À cautela e sem conceder peço desculpas por isso, não só ao Elton John com a quem estivesse presente, coitados. Dolce e Gabanna não me lembro de alguma vez ter usado, mas eu não sei a marca da maior parte da roupa que uso, o que pode ser um indicador.
         Hoje decidi experimentar a lógica de Elton John: entrei no estabelecimento e disse Ouça lá, ó Senhor Sousa, é a favor ou contra a adopção por homossexuais? Ele ficou a olhar para mim, manipulo na mão: “Hã?” Eu expliquei: “É que se não tiver a mesma opinião que eu num assunto destes como é que eu posso confiar? Deve ser mais amargo que o da concorrência. Mais frio. Seria incapaz…” Interrompeu-me “Ó S’or Nuno, este sai à casa, que se vê mesmo que está a precisar” E pousou-me um café à frente em cima do balcão.
         Não se pode pensar diferente sem que nos caiam em cima como os corvos de Sir Alfred. Este tipo de mobbing empobrece-nos a todos. Coloca em causa a liberdade de expressão. Não se pode ser Charlie sem ser Dolce e Gabanna. No final, há um feitiço que se vira contra o feiticeiro: ninguém pode acreditar numa opinião que não tem a liberdade de ser outra que não aquela.
         Há um nome para isto: public shaming. Há quem diga que tem de parar. Monica Lewinsky di-lo, numa comunicação TED. Há quem escreva livros sobre isto. Há quem tenha feito do controlo destes danos um negócio. E há quem tenha feito um magnífico podcast sobre o assunto. Se quiserem saber o que é que eu vou a ouvir quando corro, se estiver com sorte, alguma coisa assim. Não é certamente o último êxito do Elton John: não dá jeito correr com gira-discos.