Talvez eu
devesse ter escrito isto há mais de um século. Afinal a internet tem outro
ritmo que não se compadece com a maturidade. Se o escrevesse a quente não o
teria escrito assim. Terei de ir tentando equilibrar-me na fina linha em tensão
entre o ritmo, a reflexão, os afazeres, que os há além da escrita, e a
obrigação que tenho para convosco e para com os temas que trago, cuja leitura
pessoal procuro que seja original. Uma linha em tensão sobre tamanha trama tem
um nome: teia. Sempre quis ser o homem-aranha. Que maneira estranha de pedir
desculpas a quem me lê e teve a paciência de esperar estes anos-luz. Ainda bem
que é só um. Ou dois, vá, no máximo. Mas para os que são, vale a pena.
Voltemos
a essa expressão sempre tão infeliz: a vaca fria. Se bem que com maionese,
marcha, fria e tudo.
Dolce
e Gabanna disseram isto. Elton John ofendeu-se e disse que não comprava.
Podia não comprar e estar calado, mas não seria ele se estivesse calado. Depois
veio a Vitória. A Courtney. A Madonna. A Ellen. Não necessariamente por esta
ordem.
A
internet é um local de lendas, não há dúvida, mas são lendas escolhidas. Não
são escolhidas pelo algoritmo G, mas por quem o manipula. No caso é
interessante que tenhamos que escavar bem fundo para encontrar as declarações
originais de Dolce e Gabanna: os títulos que nos aparecem são sempre do
boicote. Alguns
artigos vão mais longe e acompanham a notícia de links, todos eles
negativos, sobre Dolce e Gabanna e links, todos eles positivos, sobre Elton
John.
De
um lado, temos declarações de uns estilistas sobre as suas convicções e
história pessoais. Note-se que eles nem sequer são unânimes. Um gostaria de ter
tido um filho, o outro não, considera que optou por outra vida e que isso tem
consequências. Do outro lado temos uma polémica, um boicote, as declarações
reduzidas a um soundbyte, um hastag repetido a ritmo alinhado, orquestrado.
Declaração
de interesses: houve tempos em que ouvi Elton John. Até é possível que tenha
chegado a cantar qualquer coisa dele em karaoke, embora não esteja disposto a
admiti-lo senão perante provas documentais. À cautela e sem conceder peço
desculpas por isso, não só ao Elton John com a quem estivesse presente,
coitados. Dolce e Gabanna não me lembro de alguma vez ter usado, mas eu não sei
a marca da maior parte da roupa que uso, o que pode ser um indicador.
Hoje
decidi experimentar a lógica de Elton John: entrei no estabelecimento e disse
Ouça lá, ó Senhor Sousa, é a favor ou contra a adopção por homossexuais? Ele
ficou a olhar para mim, manipulo na mão: “Hã?” Eu expliquei: “É que se não
tiver a mesma opinião que eu num assunto destes como é que eu posso confiar?
Deve ser mais amargo que o da concorrência. Mais frio. Seria incapaz…”
Interrompeu-me “Ó S’or Nuno, este sai à casa, que se vê mesmo que está a
precisar” E pousou-me um café à frente em cima do balcão.
Não
se pode pensar diferente sem que nos caiam em cima como os corvos de Sir
Alfred. Este tipo de mobbing empobrece-nos a todos. Coloca em causa a liberdade
de expressão. Não se pode ser Charlie sem ser Dolce e Gabanna. No final, há um
feitiço que se vira contra o feiticeiro: ninguém pode acreditar numa opinião
que não tem a liberdade de ser outra que não aquela.
Há um nome
para isto: public shaming. Há quem diga que tem de parar. Monica Lewinsky
di-lo, numa
comunicação TED. Há quem escreva
livros sobre isto. Há quem tenha feito do controlo destes danos um negócio. E há quem tenha
feito um magnífico
podcast sobre o assunto. Se quiserem saber o que é que eu vou a ouvir
quando corro, se estiver com sorte, alguma coisa assim. Não é certamente o
último êxito do Elton John: não dá jeito correr com gira-discos.